Artigo publicado na Revista Jurídica Consulex. Por Ricardo C. V. Madeiro
A Constituição Federal de 1988 põe a vida como sendo o bem maior dos direitos fundamentais, preceituando em seu art. 196 que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. Enquanto Constituição Cidadã, previu em seu art. 198, III, a participação popular como sendo uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde.
Entretanto, em que pesem os louváveis diplomas legais criados para garantir e viabilizar a efetivação do direito à saúde no Brasil, enquanto direito fundamental de todos e dever do Estado, é observada atualmente pela sociedade a decadência da saúde pública em todos os estados brasileiros e o consequente sucateamento do SUS, assistido na mais completa inércia ao longo dos anos pelos sucessivos governos brasileiros.
A crise na saúde pública do Brasil deve ser considerada sob três aspectos básicos, quais sejam, a deficiência na estrutura física, a falta de disponibilidade de material-equipamento-medicamentos e a carência de recursos humanos.
As condições das estruturas físicas das Unidades Básicas de Saúde e dos hospitais são lastimáveis, pois as mesmas se encontram sem manutenção preventiva e/ou corretiva, funcionando muitas vezes em prédios improvisados e inadequados, com instalações elétricas, sanitárias e hidráulicas precárias, pondo inclusive em risco de morte, aqueles que lá frequentam.
As péssimas condições de atendimento à população na Atenção Primária de Saúde, porta de entrada do SUS, também é retratada pela falta de equipamentos médicos, mobílias, exame laboratoriais e até mesmo de medicamentos básicos para diabetes, hipertensão, vermífugos ou antibióticos.
A dificuldade no acesso e a ineficácia dos serviços prestados na Atenção Primária têm contribuído cada vez mais para a superlotação dos hospitais públicos, onde milhares de brasileiros padecem nas filas, mendigando por uma simples consulta, um exame diagnóstico ou uma cirurgia eletiva. A deficiência no número de leitos obriga os pacientes, na maioria das vezes, a passarem semanas acomodados no chão, em colchões ou em macas, largados nos corredores ou na recepção dos hospitais, à espera de um leito de enfermaria ou de UTI. Tal situação fere não só a dignidade do povo, mas também dos profissionais de saúde que são obrigados a conviverem diariamente com cenas tão fortes. A precariedade dessa situação fática leva ao retardo no diagnóstico de doenças e, consequentemente, uma piora em muitos prognósticos, podendo ocasionar em alguns casos, a própria morte, antes mesmo do atendimento.
Na área dos recursos humanos, tome-se como exemplo o Município de Fortaleza, uma das maiores capitais do Brasil, sede da copa em 2014, que em recente visita realizada pela Comissão de Saúde da OAB-CE, acompanhada pelo Ministério Público Estadual, Conselhos Estadual e Municipal de Saúde e os representantes de todos os Conselhos Regionais da área de saúde, foi constatada que cerca de 60% de todos os profissionais da área da saúde são contratados com vínculo precário de trabalho através de empresas terceirizadas ou cooperativas, em total afronta à Constituição, que exige a aprovação prévia em concursos públicos para a investidura em cargo ou emprego público, ressaltando-se que a carência de médicos no SUS, se dá principalmente, pela falta de concursos públicos. O Governo Brasileiro deliberadamente vem substituindo os Concursos Públicos por contratações via ONG, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), Cooperativas de Serviços ou a EBSERH, empresa pública dotada de personalidade jurídica de direito privado, o que certamente constitui-se também em retrocesso político.
O número de equipes de Estratégias de Saúde da Família (ESF), antigo PSF, também se revelou insuficientes, atendendo apenas a 40% da demanda. Tudo em desacordo com a Portaria Ministerial Nº 2488/GM de 21/10/2011.
Impõe-se ainda lembrar, que na periferia das grandes cidades, a ausência de segurança quando da realização das visitas aos moradores em área de risco, acaba por muitas vezes, inviabilizando o trabalho domiciliar das equipes de ESF.
Diante do clamor público do último mês, aonde o povo manifestou sua revolta ante o descaso em vários setores que envolvem direitos fundamentais, o Governo Brasileiro, no apagar das luzes dessa gestão, fazendo ouvidos moucos às vozes dos que fazem o Controle Social, anunciou o que denominou de "Pacto Nacional Pela Saúde Pública", numa aparente tentativa de imputar à categoria médica, a responsabilidade pela caótica situação em que se encontra a saúde pública no Brasil. Referido Pacto, ao que demonstra, parece mais um projeto desenvolvido para uma campanha eleitoral do que propriamente para solucionar ou pelo menos minimizar os graves problemas na saúde, vivenciado por esta gestão.
A questão da importação de médicos estrangeiros sem revalidação de diploma representa verdadeira ofensa à Constituição, seja em relação ao seu artigo 5º, XIII que dispõe acerca das limitações para o exercício das profissões regulamentadas, cujas atividades para serem exercidas têm que obedecer à legislação específica de cada caso, o que implica aí na obrigatoriedade, além da formação acadêmica, do registro do diploma no respectivo Conselho ou Órgão Fiscalizador da Profissão, seja em relação a exigência do seu artigo 37, II, no qual aduz sobre a aprovação prévia em concurso público para a investidura em cargo ou emprego público.
É através desse processo de revalidação que resta reconhecido se os diplomas de cursos de graduação expedidos por estabelecimentos estrangeiros são equivalentes aos diplomas emitidos no Brasil, garantia essa necessária para atestar a segurança e a qualidade da assistência à saúde. Ademais, garante o Governo que a autorização concedida a estes médicos diplomados no exterior, sem o revalida, será restrita a determinado município, estando estes, inabilitados para exercerem a medicina nos grandes centros. Além de não entendermos os motivos da discriminação, também não entendemos como seria feita a fiscalização destes profissionais pelo Conselho Federal de Medicina.
A outra providência legal do Governo Federal, foi a que elevou a carga horária dos cursos de medicina de 6 para 8 anos a partir de 2015, com início previsto para o próximo governo. Além de não possuir efeitos práticos, já que, se por um esforçado exercício de imaginação, fosse uma medida notável, só virá a ocorrer a partir de 2023, por ser extemporânea, traz consequências graves, como por exemplo, o custeio da supervisão dos médicos oriundos das faculdades particulares durante esses dois anos por parte do governo federal.
Na verdade, não dá para deixar de notar o contrassenso entre essas medidas, pois ao tempo que o Governo Federal autoriza a importação de médicos diplomados no exterior, sem se preocupar com a sua qualificação através da revalidação do diploma, parece crer na falta de capacitação do médico brasileiro após 6 anos de faculdade, já que entende necessário o aumento da carga horária do curso de medicina no Brasil.
Com essa medida, resta claro que a real intenção do Governo não seria a desconfiança na falta de capacitação dos profissionais após 6 anos de curso, já que os mesmos, nesses 2 anos relativos ao aumento da carga horária vão, na verdade, suprir a deficiência de médicos, sendo lotados nos hospitais do SUS com uma autorização provisória para exercício da medicina, a custos módicos de uma bolsa estudantil.
Estudo demográfico médico realizado no Brasil pelo CFM e CREMESP, entre 1970 e 2011, demonstrou que o número de médicos no Brasil passou de 58.994 para 371.778, já tendo atingido hoje a 400 mil médicos, o que significa dizer que o número de médicos aumentou algo em torno de 530%, enquanto a população no mesmo período aumentou 104,8%. A razão médico/habitantes de 1980-2011 aumentou 72,5%, ou seja, esta relação saltou de 1,13 médico por 1.000 habitantes em 1980 para 1,95 em 2011. O Brasil é o quinto país do mundo com o maior número de médicos, porém com uma grande desproporcionalidade no que se refere à distribuição entre as regiões brasileiras [1].
Daí que a primeira preocupação deveria ser em incentivar o profissional médico a iniciar sua carreira nas zonas rurais, dando-lhe a expectativa de promoções aos centros urbanos. O certo é que há muito tempo impõe-se uma reforma na carreira dos médicos e de outros profissionais da saúde voltados para o exercício da profissão na seara pública, demandando a contratação de profissionais somente por meio de concurso público, pondo fim às práticas do nepotismo e do clientelismo, atraindo assim os profissionais para as regiões mais distantes.
A questão está longe de ser um problema apenas de carência de médicos. O que se tem na verdade é a hipocrisia governamental, que para se esquivar de sua responsabilidade ante a caótica situação do belíssimo direito universal e gratuito à saúde criado pela Constituição de 1988, queira puni-los com medidas legais “enfiadas goela abaixo”, e, pior, maculando a imagem do médico perante a sociedade mais carente, pois é o profissional médico quem está na linha de frente junto a essa população que pensa que o ‘doutor’ poderia resolver tudo se quisesse.
Os médicos sim são forçados a trabalhar numa estrutura precária, improvisada e, muitas vezes, expondo a sua integridade física, moral e ética, como se de "guerra" fosse, cujos sonhos de realizar o bem maior através do compromisso de oferecer assistência ao próximo, após anos de estudo e sacrifícios pessoais, estão oprimidos pela realidade do atual sistema público de saúde brasileiro.
A população e os profissionais de saúde pedem socorro! Só não sabem a quem!
MADEIRO, Ricardo C. V.
Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza; graduado em Medicina pela Universidade Federal do Ceará; Pós-Graduação em Medicina Legal pela Universidade Castelo Branco do Rio de Janeiro; Pós-Graduação em Direito Médico pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci; Pós-Graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estadual do Ceará; Residência Médica em Cirurgia Pediátrica e Geral; Conselheiro da OAB-CE; Presidente da Comissão de saúde da OAB-CE; Presidente do II Congresso Brasileiro de Direito e Saúde; Membro do Comitê Executivo Estadual da saúde do CNJ; Conselheiro do Conselho Estadual de Saúde do Estado do Ceará; Mestrando em Saúde Pública pela Universidade Americana de Assunção.
Nenhum comentário:
Postar um comentário