Tudo começou com uma observação superficial do escritor Ruy Castro na coluna de Ancelmo Gois no jornal O Globo no início de maio de 2014. Castro perguntava: “Por que só se veem advogados, sociólogos e ex-presidentes se manifestando a favor da legalização da maconha e nenhum médico?” Rapidamente, o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, professor da Unicamp, rebateu: “Como não?” E enviou ao colunista assinaturas de cem médicos favoráveis à legalização, entre eles o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão.
Em seguida, o também médico Antonio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), entraria em cena para expor que a legalização não é ponto pacífico na classe médica. “A droga, quando fumada, piora todos os quadros psiquiátricos, que já atingem até 25% da população, como depressão, ansiedade e bipolaridade. A maconha pode desencadear as primeiras crises graves. Passamos anos esclarecendo os malefícios do cigarro, lutamos para reduzir o uso de bebida alcoólica, e a pergunta que fica é: a quem interessa e por que a legalização da maconha fumada deve ser fomentada?”
Para apimentar ainda mais a polêmica, a notícia sobre a audiência pública no Senado Federal de 20 de maio de 2014 para discutir a descriminalização do porte de maconha foi publicada no site da ABP com insultos aos participantes da mesa contrários à proibição. A jurista Maria Lucia Karam, presidente brasileira da ONG Leap (Juristas contra a proibição, na sigla em inglês), foi chamada de “bipolar”. O neurocientista Renato Malcher Lopes, professor de Neurobiologia da Universidade de Brasília, identificado no texto como “botânico”, seria “fraco”. No fim, uma afirmação: “Eles estão mostrando os dentes”.
A suspeita dos antiproibicionistas sobre a autoria da postagem recaiu na psiquiatra Analice Gigliotti, representante da ABP na audiência no Senado, mas a associação atribuiu as ofensas a uma “invasão de hackers” e repudiou os termos utilizados. “Teria sido mais honesto e adulto se eles tivessem simplesmente admitido o erro. Em vez disso, insinuaram que seus críticos hackearam o site”, disse Malcher Lopes. “A audiência foi tranquila, fiquei surpreso com o conteúdo do texto, certamente um e-mail da Analice publicado por engano.”
O psiquiatra Regis Eric Barros, que se colocou contra a posição antilegalização da ABP em artigo, sentiu-se atingido pela insinuação de que teria algo a ver com o suposto ataque hacker. “Houve, sim, essa insinuação”, diz Barros. “A ABP não se permite o diálogo. Nunca fizeram um fórum sobre a maconha, uma mesa-redonda, nunca abriram espaço para discussões. Não acho legítima a opinião contundente contrária à legalização, porque ela não foi sequer discutida.”
Maria Lucia Karam, chamada de “bipolar” no tal texto, disse que o termo era de fato ofensivo, mas não a ela, e sim àqueles que sofrem do transtorno. “Eles ofenderam pessoas que podiam ser seus pacientes. É estarrecedor algo assim vindo de psiquiatras e que esse tipo de gente represente uma categoria.”
Para ela, os proibicionistas são movidos pelo “desespero”. “A realidade tem mostrado que a legalização avança. Após mais de 40 anos de guerra às drogas, está cada vez mais claro que a proibição não leva à diminuição de circulação das substâncias, é o contrário: elas estão cada vez mais baratas, potentes e acessíveis. Uma coisa é achar que droga faz mal, outra coisa é não conseguir ver que a proibição faz mais mal ainda.”
Em meio ao tiroteio, circula nos bastidores a acusação de que a defesa da proibição ocultaria interesses de psiquiatras ligados às instituições que atendem dependentes químicos no País. Também associado à ABP, o psiquiatra Luiz Fernando Chazan, professor de Saúde Mental e Psicologia Médica da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, não entra em detalhes, mas aponta a existência de outros fatores em jogo: “Há interesses políticos, religiosos e econômicos e a ciência fica em segundo plano. Uma verdade científica hoje não será verdade amanhã. Como cientista, tenho de conviver com as incertezas, não dá para ter certezas inquestionáveis”. De acordo com o psiquiatra, a ABP fecha questão em torno dos danos da maconha apesar da falta de consenso.
Segundo Silva, presidente da ABP, a entidade escuda-se em estudos científicos e também na posição do Conselho Federal de Medicina (CFM) em defesa da proibição da maconha fumada ou ingerida, admitindo apenas o uso terapêutico. “Não é verdade que não debatemos o assunto, tivemos mesas-redondas em vários congressos”, rebate. “A ABP não faz plebiscito. Se o CFM decidiu, temos de seguir, obedecer”.
Não existe uma resolução oficial do CFM sobre a maconha, apenas uma nota, publicada posteriormente ao imbróglio, na qual o conselho se posiciona contra a liberação “para uso recreativo de quaisquer substâncias que ofereçam riscos à saúde pública ou de gerar despesas futuras para nosso combalido sistema de saúde e securitário”.
O Uruguai conseguiu zerar as mortes relacionadas ao tráfico de maconha desde a legalização em dezembro de 2013, informou o secretário nacional de Drogas Julio Calzada em outra audiência pública no Senado brasileiro. Calzada deixou várias dúvidas no ar durante a sua exposição: “Qual é a questão central das drogas? O foco deve estar na substância? Nas pessoas? Na cultura? Na sociedade? Na política? Na geopolítica? Nas leis? Perguntas interessantes.
Fonte: Carta Capital
Autora: Cynara Menezes